Amazônias em movimento: entre fronteiras, corpos e mapas quebrados
As Amazônias não cabem no singular. São múltiplas em seus rios, cidades, florestas, mitologias e experiências. Pensá-las como uma só seria repetir o equívoco de uma visão colonial que busca simplificar o complexo, apagar as bordas e reduzir a vastidão. O termo Amazônias afirma a diversidade de povos, temporalidades e territórios que compõem essa região em constante reinvenção.
A floresta, enquanto ecossistema vivo e simbólico, se ramifica em distintas formas de existência — igapós, várzeas, florestas de terra firme, campos alagados — que sustentam modos de vida plurais, moldados por relações ambientais, culturais e históricas específicas. Assim como os biomas, os processos culturais também são múltiplos: confluem tanto nas comunidades tradicionais como nos centros urbanos, das festas populares às instalações contemporâneas, das ciências ancestrais à experimentação digital.
As Amazônias ultrapassam fronteiras nacionais e se estendem por nove países sul-americanos. Embora compartilhem uma floresta contínua e uma bacia hidrográfica interdependente, as divisões políticas e econômicas impõem distanciamentos que são mais geopolíticos do que geográficos. Nesses limites traçados entre nações, a arte emerge como uma das poucas linguagens capazes de gerar encontros reais — entre culturas, estéticas e formas de pensamento. É nesse “entrelugar” que o fazer artístico assume um papel vital: como ferramenta de tradução, resistência e conexão.
A produção artística nas Amazônias é permeada por tensões e deslocamentos, tanto geográficos quanto simbólicos. Os artistas que atuam nesses territórios — sejam indígenas, ribeirinhos, urbanos, afro-amazônicos, quilombolas ou de trajetórias híbridas — elaboram poéticas que incorporam as particularidades dos lugares onde vivem, experimentando linguagens em constante negociação com os contextos. Seus trabalhos não partem de modelos fixos, mas de experiências encarnadas, de saberes transmitidos por gerações ou reinventados nos embates cotidianos. São produções que emergem da intimidade com os rios, as ruas, os quintais e os afetos locais, respondendo a paisagens emocionais e políticas.
É necessário compreender que a Amazônia não opera sob uma única temporalidade. Como já afirmou Milton Santos, os espaços podem conter tempos múltiplos em coexistência. O tempo da cheia e da seca, da festa e do luto, da tecnologia digital e do silêncio ancestral coexistem. Essa sobreposição temporal é visível nas práticas artísticas que recusam o binarismo entre tradição e contemporaneidade, natureza e cidade, memória e invenção.
Quando se trata de imaginar futuros para as Amazônias, torna-se fundamental reconhecer a inteligência territorial alicerçada de tecnologia dos povos que as habitam. Essa inteligência não é apenas prática, mas também ética e estética. Está presente na arquitetura das casas sobre palafitas, nos grafismos corporais, nos sistemas agrícolas, nos cânticos, nas festas e nas redes de cuidado coletivo. Está também nos corpos que dançam, criam, escrevem, constroem imagens e pensamentos.
O evento da Bienal das Amazônias propõe uma curadoria que reconhece essa complexidade e pluralidade. Ao reunir artistas de diferentes territórios amazônicos, a Bienal não busca estabelecer uma identidade única ou um estilo amazônico padronizado, mas sim afirmar o dissenso como potência. Evita-se a armadilha de buscar uma estética única e essencializada da região, rejeitando o enquadramento exotizante ou a leitura subalterna da produção local.
A Amazônia não é periferia de nenhum centro. Não existe centro. Como afirmou Ariano Suassuna, “ao redor do buraco, tudo é beira”. É dessa beira que emerge uma arte que interroga a própria noção de mapa. Afinal, todo mapa é uma invenção, um conjunto de acordos que definem, limitam e conduzem. A cartografia, longe de ser neutra, é um exercício político. Cada linha traçada representa negociações, exclusões e alianças. Cada fronteira é também uma marca de poder — e, por isso mesmo, pode e deve ser contestada.
A arte, nesse sentido, atua como uma força capaz de desestabilizar mapas fixos. Ela desloca, rompe, costura, atravessa. Pode até não destruir os mapas, mas os coloca em movimento. Uma exposição pode ser esse gesto: de desvio, de abertura, de realocação de sentidos. Pode provocar a quebra de acordos injustos ou obsoletos. Pode convocar novas cartografias, mais porosas, afetivas e horizontais.
É nessa zona — entre fronteiras contestadas, mapas em disputa e histórias que resistem ao apagamento — que a arte amazônica opera. Não como espelho, mas como farol. Como possibilidade de ver o que ainda não se nomeou. Como convite para repensar a relação entre cultura, território e futuro. A arte permite imaginar colaborações que rompem com lógicas coloniais de separação e isolamento, propondo alianças baseadas na escuta, na diferença e na reciprocidade.
Amazônias, no plural, são testemunhas da complexidade, da beleza e da dor de existir entre mundos. A distância entre os países amazônicos é real, mas não definitiva. As diferenças entre os povos, as línguas, os modos de vida, são riquezas e não obstáculos. A arte, nesse contexto, atua como mediadora de possibilidades, como testemunha e como ferramenta de construção comum.
As palavras jamais serão suficientes. Ao lado delas, caminham os sons, os gestos, os sabores, os ritmos, os silêncios. E a arte, em sua lentidão urgente, insiste em criar espaços onde as Amazônias possam ser vividas — e não apenas descritas.
Keyna Eleison e Vânia Leal
Curadoras